Carta a José Maria Aznar
Pelo respeito às vítimas das bombas

por Hendrik Vaneeckhaute

Exmo. Sr. Aznar:

Em meio à raiva deixada pela explosão das bombas postas por uns assassinos covardes, não posso calar-me. Não me quero calar perante aqueles que utilizam as armas para assassinar pessoas que nada têm a ver com o caso, nem com o seu projecto nem com a sua guerra. Nem perante aqueles que defendem ou promovem a utilização destas armas. Não me quero calar, nem quero defender algumas vítimas sim e outras não. As pessoas que morrem assassinadas pelas bombas são todas iguais. Não há justificação nenhuma. Por isso, não me quero calar depois de ouvir o seu discurso.

Ainda não estavam recolhidos os corpos das pessoas vitimadas por aqueles que acreditam na razão das bombas e o senhor já estava a fazer uso político da tragédia. O senhor apropriou-se destes mortos como mártires da sua bandeira.

Utilizar bombas desta forma indiscriminada para defender certos valores não depende de estar a favor de uma ou outra constituição. O senhor declara-se defensor da actual constituição. Parece-me. Mas o senhor mandou lançar bombas em cima de um povo, das suas casas, dos seus mercados, dos seus comboios. Morreram milhares de pessoas assassinadas por estas bombas. E ali restam dezenas de milhares de familiares das vítimas em meio a um caos incontrolável. Deixei o meu sonho, e chorei por estas vítimas, tal como o faço pelas actuais.

Posso perguntar-lhe a diferença que há entre as vítimas que morrem assassinadas por uma bomba deixada num comboio ou por uma bomba lançada de um avião? São assassinadas ambas, vítimas de um objectivo declarado acima da sua vida. São vítimas iguais dos criminosos que acreditam que a defesa dos seus valores justifica os danos 'colaterais'.

Há que deixar os mortos em paz, o senhor disse há pouco. E agora o senhor diz que nunca irá esquecer estes mortos. Será que alguns mortos incomodam e outros não? Os familiares da últimas vítimas do terror sempre irão contar com o seu apoio. Os familiares dos 30 mil detidos, desaparecidos e enterrados em fossas anónimas ainda aguardam o apoio de algum político nacionalista espanhol. Em todos os países do mundo vão-se manifestar, voluntariamente, para que não se esqueçam destas pessoas, vítimas de um terrorismo que o senhor nunca quis condenar.

Ao ouvir as notícias pude imaginar muito bem como se sentem os familiares das vítimas do terrorismo. Vivi muito de perto a dor das vítimas das bombas e do terrorismo na Croácia e na Colômbia. Recordo-me muito da tristeza, da incompreensão, da raiva e da angústia que vivi nesses momentos, junto com as vítimas do terrorismo. Recorda-me os enterros das vítimas num país — a Colômbia — que o senhor visitou há pouco. Eram vítimas de um grupo armado que actua sob o nome de AUC. Mas todos sabem, menos aqueles que não querem vê-lo, que este grupo terrorista conta com o apoio do exército oficial. Também nessa acção, e apesar dos capuzes, foram reconhecidos alguns dos militares que costumam estar no caminho contra o povo. Existem dezenas de relatórios das Nações Unidas (do Alto Comissariado para os Direitos Humanos), tal como dezenas de relatórios da Amnistia Internacional, do Human Rights Watch, da Federação Internacional dos Direitos Humanos, e de tantos mais, que deixam claro que os paramilitares (que actuam sob o nome de AUC) foram criados, armados e apoiados pelo mesmo Estado através do seu exército. O senhor exprimiu o seu apoio incondicional a um presidente que, tal como os seus antecessores, nega-se a cumprir as recomendações das Nações Unidas. As próprias Nações Unidas não deixam de criticar sua política de Segurança Democrática, por sua total falta de garantias e respeito para com os direitos fundamentais. Os familiares daquelas vítimas do terrorismo não recebem qualquer apoio do seu governo. Não existem investigações e muito menos pessoas declaradas culpadas por algum tribunal. Ao contrário, vivem ameaçadas todos os dias e tratadas como inimigos da democracia por denunciarem o modelo de Estado que lhes quer impor o seu governo.

São muitas palavras, também demasiadas, em momentos que só deveríamos estar tristes. Mas a utilização política que o senhor faz nestes momentos, a falar dos 'espanhóis de bem', em 'estar ao lado da constituição' ou da 'Espanha unida' é completamente contraditória com estas outras palavras suas, de que 'devemos dar voz' aos familiares das vítimas. Gostaria que os familiares de tantas outras vítimas que morrem sob bombas (espanholas) tivessem uma voz que o senhor pudesse ouvir.

O senhor e o seu governo vendem, até presenteiam, armas aos governos que violam de forma sistemática os Direitos Humanos. Não só na Colômbia, a lista é maior: Arábia Saudita, Nepal, Israel, Paquistão, etc. Não importa se são regimes com pouca ou nula democracia. Nem importa se são ditaduras militares que dispõem de armas de destruição maciça, como é o caso do Paquistão.

Quando participo num manifestação não o faço sob nenhuma bandeira nacional, nem por nenhuma constituição. Fa-lo-ei em nome dos Direitos Universais, em solidariedade com todas as vítimas e sob o lema, NÃO ÀS BOMBAS.

Atenciosamente,
                 Hendrik Vaneeckhaute

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/spain/040312hen.htm

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

12/Mar/04